Num dos grupos de discussão dos quais participo, o Chá de Livros, a polêmica sempre rola solta – e em alto nível. Semana passada tive que furar a fila das minhas leituras com um romance de Valter Hugo Mãe para dar meu pitaco no debate. E foi o melhor que eu fiz, porque adorei “O filho de mil homens” (CosacNaify), um romance multifacetado que encheu meu coração de alegria.

Esperança, essa comodity rara e cara, é sua matéria-prima. Seu estilo narrativo me lembrou Saramago – será apenas o sotaque lusitano ou tem mais? Acho que o parentesco vai além. Vem do universo de personagens e sentimentos. A história, as histórias do romance de Mãe, falam de família. Da nova família. São pais sem filhos, filhos sem pai, adoções feitas pelo coração, na intenção de liberar a felicidade, de reinventar a família.

Crisóstomo tem 40 anos e se sente incompleto. Adota um filho que nunca teve pais e que perdeu o avô adotivo. Isaura, uma mulher seca e feia, pode encontrar afinal a beleza e a paz até em seu “casamento” com Antonino, o homossexual, ou “maricas” no português de Portugal. Camilo aprende, Matilde aprende, Mininha aprende. Os solitários descobrem que podem construir outras formas de viver e de espalhar esperança. Tudo sem sentimentalismo, sem pieguice.

Um trecho só pra ilustrar:

“Deve nutrir-se carinho por um sofrimento sobre o qual se soube construir a felicidade, repetiu muito seguro. Apenas isso. Nunca cultivar a dor, mas lembrá-la com respeito, por ter sido indutora de uma melhoria, por melhorar quem se é. Se assim for, não é necessário voltar atrás. A aprendizagem estará feita e o caminho livre para que a dor não se repita.”

“O filho de mil homens” é o quarto livro de Valter Hugo Mãe, português nascido em Angola em 1971. O escritor já recebeu prêmios como o José Saramago e o Portugal Telecom e vem sendo aplaudido como uma das vozes mais expressivas da literatura em língua portuguesa.

Beijos, bom final de carnaval!

1 thoughts on “Matéria-prima: esperança

  1. Terezinha says:

    Que linda resenha.
    Sou fã de Valter Hugo Mãe.Jesus. Como é bom!
    Adorei o trecho em que fala de leitura:
    “Para entreter curiosidades, o velho Alfredo oferecia livros ao menino e convencia-o de que ler seria fundamental para a saúde. Ensinava-lhe que era uma pena a falta de leitura não se converter numa doença, algo como um mal que pusesse os preguiçosos a morrer. Imaginava que um não leitor ia ao médico e o médico o observava e dizia: você tem o colesterol a matá-lo, se continuar assim não se salva. E o médico perguntava: tem abusado dos fritos, dos ovos, você tem lido o suficiente. O paciente respondia: não, senhor doutor, há quase um ano que não leio um livro, não gosto muito e dá-me preguiça. Então, o médico acrescentava: ah, fique pois sabendo que você ou lê urgentemente um bom romance, ou então vemo-nos no seu funeral dentro de poucas semanas. O caixão fechava-se como um livro.”
    Valter Hugo Mãe (1971). O filho de mil homens. São Paulo: Cosac Naify,2012. p. 68-69

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