A África do Sul é um dos países com maior número de premiados com o Nobel. Só da paz foram quatro: o ativista negro Albert Lutuli, 1960, o bispo Desmond Tutu, 1984, os líderes (negro) Nelson Mandela e (branco) Frederik de Klerk, 1993.
Na literatura, o país africano também recebeu seu Nobel: o escritor J.M. Coetzee, autor de obras-primas como “Desonra”.
Dele acabo de ler “Infância”, primeiro da trilogia completada por “Juventude” e “Verão”, em que o gênero da ficção autobiográfica lhe permite traçar um ácido painel da vida de um menino branco dividido entre culturas, temperamentos e origens históricas na maior parte das vezes conflitantes.
Nascido John Maxwell Coetzee em 1940, na Cidade do Cabo, o autor (e o menino John, seu alter ego) tem nome de africânder, é filho de africânderes, mas sua família fala inglês. Naqueles meados do século XX, ele vive como um estranho no colégio que frequenta: não se encaixa no perfil de violência dominante, se passa por católico para fugir ao culto anglicano, mas escapa do catecismo e é amigo dos judeus.
Em casa, não gosta do pai, que lutou na guerra e tem origem na fazenda que o garoto tanto ama, mas se liga na mãe, que é “boa demais”, não bate nele, faz todas as suas vontades, mas lhe tira a sensação de normalidade, o que o joga em conflito constante com o mundo.
Passa como pano de fundo no livro a história da África do Sul, com a oposição entre anglófilos e africânderes, e a presença surda dos negros, em inferioridade social que quase os torna invisíveis – são raros os momentos em que é explicitada, por exemplo, a necessidade de quebrar uma xícara porque ela foi usada por um negro.
“Infância” é uma narrativa seca como um soco. Direta, sem excessos nem derramamento, aponta para a cultura branca do país como uma arma a revelar a verdadeira face do povo que inventou o apartheid e levou mais de 40 anos para expurgá-lo, deixando de herança a miséria de uma multidão.
PS – Recebi simpática mensagem do Vernon Leão, da SGAF/Senarc, lembrando de outra sul-africana que recebeu o Nobel de Literatura, a branca (de origem judia) Nadine Gordimer. Bem lembrado! Dela li “De volta à vida”, um belo romance que tem a luta anti-apartheid como pano de fundo na história de um homem que teve câncer. Valeu, Vernon!

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