Estava preparando uma palestra sobre o documentário Janela da alma, que acabou transferida por motivo de força maior, mas não consegui adiar as questões que o filme do diretor João Jardim me suscitou. A começar pelo tema, a questão da visão. Não se trata de um apanhado sobre cegueira, capacidade de visão, saúde ou doença. O que importa é o olhar, é a possibilidade de ver (ou não), os olhos. Cegos, míopes, fotógrafos, cineastas são entrevistados. Prestam depoimentos ora racionais, ora emocionados. Não há como passar de liso sobre o tema.
Para me preparar para a palestra, achei melhor rever o filme, que tinha visto muitos anos atrás. Lembro apenas como me tocou, eu, míope a vida inteira, com óculos de grau na cara desde sempre. Quando pequena, minha auto-imagem passava pelos óculos – “Olha a carinha de intelectual, a futura literata, como é inteligente”, me cansei de ouvir. Adolescente, começaram as pressões para tirar os óculos, tentar lentes de contato, para ficar “mais bonita”. Sacrifício sem tamanho experimentar aquelas pecinhas que mais lembravam ciscos gigantes enfiados dentro do olho. Anos depois, inventaram lentes gelatinosas, de uso constante – também tentei, em vão. Tudo doía, maltratava, fazia enxergar pior. A cirurgia, então, ofertada como “solução” para o “problema”, dispenso. Há pormenores que a inviabilizam.
Como disseram alguns depoentes em Janela da alma, há um misto de medo e vergonha. Depois que você criou uma identidade visual que os inclui, despir-se dos óculos ameaça a segurança da gente. Pode parecer frescura, mas não é. O verbo está correto, é despir-se, mesmo. É expor-se, desnudar-se, franquear ao outro um olhar outrora protegido. O cineasta Wim Wenders cita o frame que os óculos proporcionam, a seletividade. Sem óculos, ele sente excesso de informação, visualidade exacerbada. Marieta Severo lembra que até ouve pior sem óculos – verdade, compartilho com ela a mesma sensação.
Sem querer cair em chavão, o escritor português José Saramago, autor de Ensaio sobre a cegueira, explica de onde tirou a idéia para seu romance, um dos melhores de uma rica produção. Ele diz que imaginou um dia: e se todos fôssemos cegos. E concluiu que sim, somos todos cegos. Cegos às questões mais importantes, aos problemas mais graves, à dor do outro, ao futuro do planeta, ao que importa e será determinante para a felicidade nossas e de nossos descendentes. Muito embora ainda haja tempo para abrir os olhos – da alma – e criar coragem para enxergar.
publicado no Correio Braziliense em 26/10/2007
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