Como viajei muitas vezes sozinha por esse mundão de meu Deus, muitas vezes a única companhia era a de um livro. Excelentes companhias, por sinal. Teria que ter memória de elefante pra me lembrar de todos, mas de alguns nunca vou me esquecer, seja pelo conteúdo em si, seja pelas circunstâncias.
Por exemplo: logo que comecei a viajar pro exterior, com meus conhecimentos medianos de inglês e francês, percebi que a leitura em outra língua me ajudava a pensar naquele idioma, treinando o cérebro e os ouvidos pro que estava vendo, ouvindo e lendo na vida real.
O primeiro livro que me lembro de ter ajudado nisso foi o “Jurassic Park”, de Michael Crichton, que comprei em inglês numa edição de bolso, papel jornal, baratinha, numa livraria de aeroporto nos Estados Unidos. Como já havia visto o filme, e o romance tem aquele ritmo e aquelas aventuras frenéticas, me envolvi tanto que não havia problema ter tanta palavra desconhecida. O importante era entender o sentido geral e me habituar a pensar em inglês.
Outro também em inglês foi “When she was good”, de Philip Roth, autor que na época em que li ainda não era o meu grande amor literário que viria a se tornar. Foi durante o cruzeiro pelas ilhas gregas. No navio, praticamente só se falava inglês, então as maldades da protagonista me ajudavam a compreender os colegas e a me fazer entender por eles, fossem tripulantes, turistas ou os locais gregos nas ilhas em que aportávamos. Fiquei tão fissurada na leitura que, muitas vezes, trocava a tagarelice no convés pela minha cabine, a solidão acompanhada por Philip Roth e sua Lucy.
No outro navio, o ferry que me transportou da Grécia pra Itália, na tal noite em que passei um frio do cão, meu companheiro de viagem era um livro do amigo Jorge Fernando dos Santos, “O ET de Varginha”. Aventuras juvenis devoradas em poucas horas sobre o Mar Jônico e a mitologia que ele encobre.
Já comentei nas outras crônicas que não sabia italiano, mas me virava nas viagens àquele amado país. Isso se deu em parte porque eu tentava ler tudo que pudesse. Lia os jornais todos os dias. E aos poucos fui entendendo o noticiário. Também via TV nos hotéis, porque era Copa do Mundo, e assim aprendi as cores (cartelino gialo, cartelino rosso), entre tantas coisas. E tinha também os chutes inevitáveis. Em Palermo, por exemplo, senti frio à noite e liguei pra recepção do hotelzinho:
– Per favore, io voglio una coperta.
Deu certo! Em cinco minutos bate à minha porta a moça com um cobertor.
Na França, numa das viagens de bicicleta que fiz com o grupo de amigos do Dá Pedal, comprei em Saint Jean Pied-de-Port (na foto de Paulo de Araújo) um livro sobre os bascos, povo de origem da minha família materna, os Arreguys. Era em francês, de modo que exercitei o idioma e aprendi sobre os meus antepassados na mesma curtição literária.
Ali também, início do Caminho de Santiago de Compostela, adquiri um dicionário de basco, embora já estivesse claro pra mim por que o nome da cidade, em Euskera, é Donibani Garazi (Seu João da Porta) e San Sebastian, Donostia (Seu Tião). Sobre os bascos uma hora eu conto tudo. Aprendi muito!
Outra lembrança literária interessante se deu em Cuba. Estava eu na praia, ao sol do Caribe, em Varadero, curtindo minhas férias e lendo “Os Irmãos Karamazov”, quando um grupo de rapazes se mostrou interessado na sereia aqui. Um deles se aproximou e puxou papo. Eram colombianos. Simpáticos.
– Qué leyes?
– “Os Irmãos Karamazov”.
– Ohhhhhhhhhhh. Em que língua você lê Dostoiévski?
– Em português.
– Pessoal, pessoal, ela está lendo Dostoiévski em português!!!!!!
Foi uma admiração só. Não sei se esperavam que eu lesse em russo ou se não sabiam que língua a gente fala no Brasil. Só sei que me consideraram uma espécie de gênio. Tão superior que a paquera terminou por ali e eles foram procurar alguém mais normal.
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