Outro dia o Zé Flávio me perguntou em quê a máquina de escrever ajudava mais o escritor do que o computador. Eu respondi:

– Ajuda a demorar mais.

Pra mim a tecnologia só contribuiu. Só escrevi à mão até aprender a datilografar, ainda no científico (atual ensino médio). À medida que fui me aproximando da profissionalização, aprimorei meus equipamentos, trocando a máquina do papai por uma elétrica, depois pelo primeiro computador pessoal que foi lançado, e daí em diante subindo degrau por degrau sempre em direção à melhor condição tecnológica possível.

Houve outros avanços além das máquinas. Um deles foi o pen drive, que me permitiu produzir um dos meus livros mais conhecidos, o Tempo Seco.

Nem sei como arranjava tempo pra escrever livro quando trabalhava em jornal. Os dois primeiros, Fafich e Segunda Divisão, embora tenham sido lançados ambos em 2005, tiveram alguns anos de intervalo entre si.

Na época em que era editora de Cultura do Correio Braziliense, tive a ideia de escrever o terceiro romance, mas não arrumava tempo. Ficava no jornal dia e noite, fazia plantões exaustivos na editoria de Esportes nos fins de semana. Decidi então começar a escrita do livro nas férias. Mas, cansada como estava, não podia me dar ao luxo de ficar quieta em casa, escrevendo. Precisava desestressar. E ainda não tinha um notebook. Peguei então um pen drive, abri um novo arquivo e fui pro mundo.

Comecei por Belo Horizonte, onde fiz a visita de praxe à família e recalibrei os afetos. De lá, entrei num busão e rumei pra Araxá, onde finalmente realizei o sonho de conhecer o Grande Hotel, já restaurado, lindo, com seu charme histórico, os banhos de lama, comida de primeira, café da manhã de rainha, até bicicleta pra alugar e dar umas voltas no parque. Certa hora do dia, parava tudo e ia pra lan house do hotel com meu pen drive e me debruçava sobre a história de Nonato Rodrigues, o herói desse romance.

Em Araxá tomei um avião pro Nordeste. Iria revisitar João Pessoa, onde estivera com meu primo Ney nos anos 1990, mas agora voltava com a firme intenção de relaxar e escrever meu livro. Me hospedei num hotel em frente ao mar. Toda manhã, após o lauto desjejum com tapioca, vitamina de abacate, frutas locais e outras delícias, atravessava a rua e me espichava na areia pra aquecer antes do banho de mar. Só mineiro sabe a saudade que sente de uma água salgada lhe temperando as carnes. A caminhada pra lá e pra cá ajudava a manter a forma e a pensar no que viria em seguida no livro.

Voltava pro hotel e escrevia. Às vezes antes do almoço, às vezes depois, sem hora marcada, intercalando a produção com os passeios. Bastava ocupar o computador dos hóspedes, instalar o pen drive e mandar brasa. Quer saber como eu fazia o backup, né? Mandando e-mail pra mim mesma, claro. Vai que eu perco o pen drive num descuido?

Antes de me tornar ciclista, era nas caminhadas que eu tinha as melhores ideias. Depois que descobri a bike, criei muito enquanto pedalava por aí. Até chegar a João Pessoa, o personagem principal do livro seria cearense. Com os passeios que fiz pela cidade e imediações, as coisas foram mudando. Natinho se tornou paraibano. Estudou no Liceu em frente ao qual eu sempre passava.

No dia 23 de junho, festa de São João, entrei numa excursão de van pra Campina Grande pra conhecer o maior são-joão do mundo. Haveria show de Elba Ramalho e tudo a que se tem direito. Foi um programa legal, apesar de eu me sentir à beira de uma roubada. É que a viagem da capital pra capital do forró não é curta. Pelo contrário. Saímos às 18h, chegamos lá pelas 21h. E a proposta era ficar até o meio da madrugada.

Claro que minha energia acabou bem antes da hora. Tudo em Campina Grande gira em torno da festa. O “epicentro do fenômeno” é uma espécie de sambódromo, uma verdadeira cidade, com diversos palcos, centenas de barraquinhas, dezenas de lojas de artesanato, banheiros por todo lado, variados tipos de comida e bebida, e multidões que circulavam pra cima e pra baixo, levantando poeira, paquerando, dançando, se embebedando, enlouquecendo.

Comi, bebi, assisti ao show da Elba, dancei, circulei, comi mais, bebi mais, ouvi outros bons artistas, e não dava a hora de ir embora. Pra minha sorte, achei o motorista da van, que me autorizou a entrar no carro e tirar um cochilo. Não fui a única. Outros companheiros da excursão foram chegando, até que a lotação se esgotou e pudemos voltar pra estrada. Fui dormir às 6h da manhã, sonada, mais morta que viva, mas embriagada de cultura popular e de ideias pra pôr no livro.

***

Um dos passeios inesquecíveis que fiz foi a Tambaba, a praia paraibana de nudismo. Desde que conheci a história de Luz del Fuego, tinha curiosidade sobre o naturismo. Mas não sabia se na hora agá tiraria a roupa. Pois tirei! O campo de Tambaba era aberto a todos que se dispusessem a circular e nadar nus, desde que seguissem determinadas regras. Pagava-se pra entrar. Homens sozinhos ou em grupo não podiam entrar. Mulheres sim, sozinhas ou acompanhadas. Havia até umas meninas do lado de fora “se alugando” pra algum que precisasse de acompanhante.

Numa barraca que fazia as vezes de antessala, tirava-se a roupa, que era guardada numa espécie de escaninho. Você só podia levar consigo uma bolsinha com protetor solar, cigarro, dinheiro, essas coisas. Ali mesmo dei uma de Norminha e fiz que nem a famosa personagem do Jô Soares nos anos setenta: tirei a roupa sem o menor pudor e saí caminhando pela praia.

Todo mundo peladão! Mas importante: do código de ética constava também a proibição de ficar encarando as partes pudendas alheias. Nada de comparar tamanhos ou formatos. E nisso todos me pareceram ciosos.

Nadei, tomei água de coco numa barraca como qualquer outra – os garçons eram os únicos a usar uma sunguinha –, curti a manhã como fazia em João Pessoa, belisquei meu peixinho frito e, cansada de me integrar plenamente à natureza, segui caminho. Tinha um livro pra escrever. Ficar pelada na frente de todo mundo igualmente pelado não me tirou pedaço, não me fez sentir melhor nem pior que ninguém. Foi só mais uma aventura.

***

A paisagem paraibana ajudou a compor a história de Tempo Seco. O livro avançou bastante depois daqueles dias à beira-mar e daquelas experiências num estado tão rico e vibrante. Quando voltei pra Brasília e pra labuta, de posse do pen drive recheado de narrativas, o livro já estava com meio caminho andado. Aí foi só manter uma escrita menos intensa nos meses seguintes e partir pro abraço.

Agora, Zé Flávio, imagina um escritor fazer tudo isso com uma máquina de escrever debaixo do braço?