O amigo feicebuquiano Lindomar Silva, escritor, como eu, e servidor da Prefeitura de Belo Horizonte, como já fui, viu num recorte do jornal O Município, de Caratinga, de 1927, o sobrenome Arreguy e teve a gentileza de me mandar uma cópia, supondo que talvez me interessasse. Mal sabia ele que naquela simples página havia tanta informação histórica de interesse não apenas meu e da minha família, mas de tantos, como eu, ligados na história e nas histórias, nos causos.
A começar pela notícia que lhe chamou a atenção: a do casamento do senhor Colombo Etienne Arreguy com a jovem Lili Caldas. Ninguém menos que meu querido tio-avô e sua companheira de toda a vida, Tia Lili, pais da amada prima Magdá, que nos deixou recentemente. Tio Colombo era irmão do meu avô João. No texto original escrevi que, como meu avô, era atleticano. Não é verdade. Era cruzeirense, legado que deixou pros seus descendentes, como bem me alertou o primo Gil Campos. Quem era atleticano era o outro mano, Saulo, pai do saudoso Marçal e avô da querida Ana Márcia (ele não é citado na nota do jornal). Tio Saulo era quem tentava cooptar pro seu time minha mãe, Nini, americana doente, que, embora amasse de paixão o tio, “não se vendia por nenhum tostão”, como dizia enfática e soberana do seu desejo.
A nota informa que o enlace matrimonial se deu na residência do primogênito da família, Major Etienne Arreguy (pai de uma das primas mais queridas do clã, a Irmã Assunção, minha malunga, ou seja, que fazia aniversário no mesmo dia que eu, o que sempre fortaleceu nossos laços afetivos), e inclui a lista dos padrinhos, entre os quais outros irmãos do noivo: Tio Chiquinho, que conheci bem mais velho, solteirão, morando no Rio e nos fazendo todo tipo de agrado que um bom velhinho faria aos sobrinhos-netos; Tia Martha, que conheci pouco, também já idosa, com um cabelão que parecia nunca ter cortado. Testemunhei o dia em que ela, visitando minha avó Glorinha, comentou essa questão do cabelo grande e de como minha avó ficava tão bem com os dela curtos. Minha mãe, que na época cortava as melenas de toda a família, lhe propôs:
– Uai, Tia Martha, se a senhora quiser, corto agora pra senhora. Vai ver como se sentirá muito melhor com os cabelos curtos, mais modernos. Não dão trabalho, vale a pena tentar.
Ela aceitou na hora. Minha mãe então reforçou a trança da tia, prendeu-a bem alto e deu uma tesourada só. Depois fez os retoques, deixando-a quilos e décadas mais leve e rejuvenescida. Já sua trança foi imediatamente incorporada ao material cênico que usávamos nos teatros da família. Tanto tempo já passado e temos até hoje a peruca de trança grisalha da Tia Martha, que amarrávamos a um lenço pra fazer papel de velha no teatro.
A terceira testemunha era o senhor Boanerges Baptista, que se casou com a Tia Martha, com quem teve muitos filhos, dos quais me lembro mais da saudosa Martinha, mãe dos meus amados primos Piazarollo; da Nazaré, mãe da querida Ane; e do Hiram, pai dos saudosos Sebastião e Alex.
Por fim, a quarta testemunha foi a caçula dos Etienne Arreguy, Tia Filhinha, mais conhecida como a mãe da Inês Etienne Romeu, heroína da luta contra a ditadura. Inês foi a última presa política a ser solta após a anistia. Sua prodigiosa memória e não menos prodigiosa coragem lhe permitiram identificar não apenas a Casa da Morte, lugar em Petrópolis onde os verdugos torturavam e matavam opositores do regime, como os próprios torturadores, dando nome e rosto àquela ignomínia, que manchou de sangue e luto a história do Brasil.
Tia Filhinha era avançada pro seu tempo. Foi desquitada quando isso era inaceitável, tirou o primeiro título de eleitor quando o voto foi estendido às mulheres. Fumava, falava palavrão, enfrentava os policiais que invadiam sua casa à procura da filha “terrorista”. Foi muitas vezes incompreendida, mas uma grande mulher. E, pra mim, uma amiga que tive até o fim de sua longa e sofrida vida.
Vejam como tudo isso veio apenas da nota sobre o casamento do Tio Colombo. Só que a página do jornal contém muito mais, como vocês podem ver aí acima. Tem notícia sobre a União de Moços Católicos, da qual meu bisavô João Etienne Arreguy era presidente honorário e, entre os diretores, constavam, além do próprio Tio Colombo, também o senhor Geraldo Alves Pinto, pai do Ziraldo (detalhe: ambos, pai e filho, foram alunos da vovó Glorinha em Caratinga!), e o lendário Leonel Fontoura, que manteve um jornal na cidade no qual, 20 anos mais tarde, viria a colaborar meu pai, José Henriques Maia, que se mudou de Muriaé pra Caratinga nos anos 1940.
Por fim, aparece duas vezes na página o nome do famoso clínico Dr. Meira, presente na nota sobre a nova diretoria da União dos Moços Católicos e numa outra, sobre o nascimento de um filho seu. O Dr. Meira, além de amigo, era o médico da nossa família. Minha avó Glorinha confiava muito nele e o cita no livro “Antes que toque a meia-noite – memórias de uma professora”, que a Outubro Edições prepara pra ganhar sua terceira edição, revista e ampliada, a sair em breve. Aguardem!
A melhor história do Dr. Meira, no entanto, foi protagonizada por minha avó em seu final de vida, nos poucos meses em que perdeu a lucidez, afetada por um AVC. Na verdade, ela não perdeu totalmente a consciência. Apenas alternava momentos de clareza com outros de confusão mental.
Internada, fraquinha, a vovó, que sempre sentira “macacoas” e indisposições, pedia a presença de um médico a cada mal-estar que a acometia. Vinha vê-la o plantonista do hospital, ela achava ruim:
– Não dá pra ser o Dr. Meira, minha filha?
As filhas, se revezando nos cuidados com a mãe, ficavam angustiadas, porque naquela altura o Dr. Meira já havia morrido fazia décadas!
Certa noite de mal-estar, D. Glorinha fez o costumeiro apelo pra que chamassem o médico. Minha Tia Gó, solícita, respondeu:
– Tá bom, mamãe, vou ver se o Dr. Meira pode vir ao quarto.
– Minha filha, não poderia ser um médico vivo? – respondeu a vovó.
E assim a família Arreguy incorporou mais esse folclore à sua história já repleta de estórias e causos.
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