Um dos livros mais bonitos que tive a ventura de ler neste período de quarentena foi As Brasas, de Sándor Márai (Companhia das Letras), indicação de minha amiga Alê, a Alessandra Rosa, uma leitora ledora criteriosa, daquelas viciadas, que nem eu, mesmo. O autor eu já conhecia de nome, é um húngaro nascido na hoje Eslováquia, que escreveu proficuamente (43 livros), foi perseguido pelo regime soviético, deixou a Hungria e refugiou-se nos Estados Unidos, onde se suicidou em 1989.
As Brasas conta a história da relação entre dois homens, o general Henrik e Konrad, que foram colegas de colégio, ainda na infância, mantiveram amizade durante a juventude e se separaram quando entrou em cena Krisztina, mulher do general, a ele apresentada por Konrad. Numa espécie de Dom Casmurro, os ciúmes provocados pela relação em triângulo motivaram o afastamento dos dois. Quarenta e um anos depois, um bilhete de Konrad avisando que fará uma visita a Henrik desperta neste as lembranças de toda uma vida.
O general era filho de um oficial da guarda imperial no Império Austro-Húngaro, família rica e aristocrática, que acolhe o pobretão Konrad por ser o único amigo do menino. Enquanto lembra do pai austero e da mãe francesa, de hábitos mais “modernos”, dos tempos de estudos em Viena, das aventuras a dois, o general nos conta a história de um mundo que passou por fausto, guerras, decadência, e como sua vida transcorreu à frente desse pano de fundo.
A história de uma região tão peculiar da Europa, as nuances das personalidades, como a “fraqueza” pela música, que unia Konrad à mãe francesa de Henrik, os percursos que se tocam e distanciam à medida que sentimentos e sensações se confundem entre amizade, atração, dependência, repulsa, ciúme, saudade, fazem da narrativa de As Brasas um dos textos mais bonitos e bem escritos que tenho lido há muito tempo.
O enredo vai e volta entre as lembranças, a memória, a história, e as reflexões do tempo atual, em que ambos têm mais de setenta anos de idade e se vêm próximos da morte. A visita do amigo reaquece o ânimo do general solitário, que prepara uma ceia monumental num castelo habitado por criados de libré, além da velha ama Nini, que o acompanha desde o nascimento, e por fantasmas como o de Krisztina. Lentamente os dois afinal conversam, tentando entender uma vida, ou melhor, duas vidas, ou melhor ainda, a vida. São reflexões que mais abrem do que fecham conclusões. Como, afinal, é o entendimento da própria vida.
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