Era janeiro e a gente entrava todo mundo no carro pra ir pra praia. Mamãe, Papai, você, eu, Fred, Ric e Beto. E Olga. É, não cabe todo mundo no Gordini, mas imagine que cabia. Alguém certamente foi no carro de algum tio, ou de ônibus, não sei, só sei que saímos apertados dentro daquele miniautomóvel, excitados pela vontade de rever o mar distante, que só podíamos curtir uma vez por ano.
Antes, porém, de rumar pro litoral, era preciso fazer uma pequena curva no sentido sudeste, pra passar por Muriaé, pra ver os tios e primos. Passamos passando por Ressaquinha, com sua igreja e a bandeira do Brasil desenhada no jardim com flores nas cores certas. De Barbacena, depois de lanchar no Cupim, a gente saía da BR e pegava a estrada que descia a Serra da Mantiqueira, curva pra lá e pra cá, paisagem deslumbrante, quantas camadas de morros, serras, quantos tons de azul, de verde verdejante, pois era tempo de chuva e as folhas não deixavam por menos.
A gente brincava no carro, cantava, ria, lia, dormia, até chegar em Muriaé, na casa da Tia Mariquita. Procurar os primos, encontrar o Nissérgio, o Nando, o Zezinho, o Anselmo, a Alvânia, o Geraldo, ir pra pracinha, esconder, correr, pegar, gritar, cansar, voltar pra casa, constatar que o relógio não andou quase nada, voltar pra rua, caçar um picolé da Sibéria, visitar a Maizé, a Meire, o Nilo, voltar de novo, ouvir os casos da Tia Mariquita e do Tio Aníbal, dar uma chegada na Tia Lola, ver a Nininha e ouvir o Sérgio assobiando como um passarinho, pegar com receio a ave empalhada que ele mesmo caçou, quando não estava pescando ou vendendo carne no açougue ou consertado sapato na oficina.
Vocês iam jogar bola lá em cima, no cemitério, só pra ver e pegar caveira, sem medo. Eu não, eu tinha medo e não ia. Ficava por cá, esperando pra gente descer pro quintal, subir na goiabeira, catar manga na mangueira, figo na figueira, correr atrás de galo e galinha, Kit e Kátia, nos enfiar pelo porão adentro, investigar fantasmas, teias de aranha, passagens secretas, armários mal fechados, revistas velhas, antigas ferramentas que teriam pertencido ao ateliê de costura do vovô João, assim como a cadeira de balanço, onde mais tarde a gente iria descansar os ossinhos de crianças adolescendo, olhando pras paredes, santos, crucifixos, folhinhas, velas, quadros esmaecidos, retratos repintados, memórias penduradas sem ninguém pra contar delas.
De manhã cedo, de novo dentro do Gordini pra rumar no sentido leste-nordeste, tchau, Muriaé, Guarapari, aqui vamos nós, mas antes Itaperuna, Bom Jesus de Itabapoana, Natividade, onde o médico viu Nossa Senhora, Campos que ainda não era de Goitacazes, contornando rios, nos aprofundando na Zona da Mata, Mata Atlântica, cujo nome ainda desconhecíamos, mas que viria a ser uma paixão entranhada em nossas peles, retinas e corações. Uma estrada de terra perigosa: na chuva, lama, lama, lama. Na seca, pó poeira solta, atolar de qualquer jeito. Morro do Coco. Freamos, atolamos, as bagagens caíram lá de cima, a gente empoeirada até a alma, sentada na beira da estrada esperando o socorro do povo do lugar, dos bons samaritanos que sabem salvar viajantes despreparados. Com fome, sede, calor, medo, vontade de chegar logo em algum lugar.
Uma hora a gente saía de lá e conseguia retomar a jornada. O Estado do Rio vai se aproximando do Espírito Santo, mas não somos de ficar em Marataízes, saltamos Iriri, Anchieta, Ubu, qualquer praia que outra hora visitaríamos, não agora que Guarapari nos esperava. Até que alcançávamos Muquiçaba, terra dos sonhos do Papai, onde ele alugava nossas casas de veraneio, casas com nomes, como Biju, ou com donos, como D. Jorny, ou com endereços, como a Rua do Campinho ou a São Pedro, mas essa não, que essa era de comércio, pra comprar um calção ou biquíni de última hora ou uma prancha de isopor pra vocês pegarem jacaré. Eu não, que tanto eu amava como respeitava o mar, no sentido de temer, simplesmente.
E então, a gente olhava pra frente e via o mar. Ele, imagem, entidade, beleza em movimento, cor, calor, refresco, como pode? Calor e refresco no mesmo tempo-espaço. Era hora da gente matar a saudade ancestral e entrar naquela água fresca e aliviar do sol escaldante do verão capixaba. E tome picolé, sorvete, refrigerante, e espetinho, e salgadinho, e o Papai na cerveja, molhando por dentro antes de molhar por fora, ou era o contrário? Primeiro o mergulho, ele deitado, boiando, só a barriga e o nariz pra fora d’água, a gente aprendendo a boiar, e foi a coisa que aprendi melhor a fazer dentro d’água, boiar, e vocês furando onda, pegando jacaré, com ou sem prancha. E depois de molhar por fora, agora sim, ele se dava o presente que tanto ansiava: a cervejinha gelada na barraca do Seu Antônio, o Baiano, com suas guloseimas, o peixinho frito, a conta aberta onde a gente tinha juízo pra pegar de tudo, sempre com moderação.
Mamãe e seu chapeuzinho, seu maiô e seu medo do mar. Mamãe só na beiradinha, pulinhos, molha a bunda do maiô, mas não entrava acima da canela. Não tinha aula de natação em piscina de Belo Horizonte que tirasse dela o trauma. Nunca aprendeu a nadar. A gente lá, deixando que todos os sentidos se excitassem junto à paisagem, à água, à areia, aos petiscos, seus sabores e aromas, às vozes felizes a cantar, contar, rir, chamar, conferir se estava todo mundo por perto, se não perdemos ninguém, ao rumorejar das ondinhas que quebram cá em cima, maré alta, lá embaixo, maré baixa…
A tarde então caía e a gente tinha que voltar pra casa. A areia já não queimava a sola dos pés, podíamos assim voltar descalços, trocando a pegada arenosa pela terra vermelha das ruas de uma cidade pequena e em crescimento, cheia de caminhos cujo perigo maior era uma espinha de peixe que se alojasse embaixo do dedão do pé. Fora o risco da insolação que quase me derrubava, não fossem as poções mágicas: talco com álcool (tálcool), Hipoglós e, em casos mais graves, picrato de butesin, aquela amarela que fedia, mas curava a finura da pele vermelha e prestes a se soltar como uma casca de fruta, deixando a gente em carne viva.
Mas nesta nossa história, nada disso acontecia. A gente voltava pra casa, dava início à caçada aos pernilongos, nem que pra isso tivéssemos que usar os travesseiros como armas a atirá-los nas paredes, acertando vários alvos de uma vez. Fronha suja de sangue, o nosso sangue tirado do corpinho gordo dos pernilongos que nos haviam esperado durante todo o ano, até que chegássemos arejando a casa, abrindo portas e janelas praquele ventinho entrar, escancarando armários e gavetas tentando neutralizar o mofo da roupa de cama, dos talheres, copos, pratos e vasilhame.
Uma hora o sono nos vencia e a gente agora iria dormir, ao som do grilo cantado em verso e prosa pelo Papai em seus escritos, que nos alegravam e nos faziam dormir rindo, acordar rindo, achar graça em tudo e passar quinze dias, um mês, no paraíso, aprendendo a ser felizes durante o tempo que fosse possível. Era possível e a gente era feliz. Dormindo, acordado, nadando, brincando, machucando, chorando, lendo ou escrevendo, a gente era feliz e aprendia a viver. Agora você ia dormir sem medo, porque não estava sozinho e tudo iria ficar bem.
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