Tenho uma imensa biblioteca cheia de livros. Muita gente me pergunta: você já leu tudo isto? E eu rio: não! A maioria eu não li. Mesmo porque, sou daquelas que gostam de ver livro circulando, então mantenho mais o que não li do que o que já li. A não ser, claro, no caso das paixões, que a gente quer manter pra sempre ao nosso lado. O bom disso é descobrir, como nesta quarentena, preciosidades ali guardadas. A mais recente foi Amélie Nothomb, de quem possuo três romances que ainda não conhecia. Mas, com a gratíssima surpresa, acabo de devorar os três.
Amélie Nothomb é belga, nasceu em 1966 no Japão, onde seu pai foi cônsul, escreve em francês e é uma das mais premiadas autoras nesse idioma nos últimos anos. O primeiro dos livros que li é o mais recente entre eles, A Metafísica dos Tubos (Record, como os demais), uma memória dos seus três primeiros anos de vida. Sim, tem gente que lembra desse período e é capaz até de descrevê-lo. Ou senão, de fantasiar, maravilhosamente, sobre ele. Amélie se descreve, até os dois anos e meio, como Deus, ou como um tubo que tudo absorve. Não fala, não se move, não reage, a ponto de ser considerada pelos pais um legume. Naquele ponto da vida, no entanto, desperta, e durante seis meses vive mil emoções, fala, anda, filosofa, ama, relaciona-se com a vida e com a morte, numa experiência delirante. E super bem escrita. O livro é curto, profundo, alucinante, viciante.
O segundo que li foi Medo e Submissão e se passa um pouco mais adiante na vida de Amélie, quando ela, aos vinte e poucos anos, trabalha durante um ano numa empresa japonesa em Tóquio. De volta ao país que idealizou naquela primeiríssima infância, a jovem se depara com todas as diferenças culturais dadas pelo extremo rigor dos nipônicos com o trabalho e os traumas deles com os ocidentais. Para gente como seus chefes, a moça capaz de traduzir do japonês para o francês e apta a fazer relatórios analíticos não presta porque não obedece à hierarquia e não se dá com os números da contabilidade. Amélie é tratada como lixo, oferece-se em sacrifício a uma temporada de tortura psicológica e se submete a tudo para beber até o fim do cálice da cultura japonesa que tanto amava. E também devido ao fascínio que sente pela extrema beleza de sua superiora mais cruel.
No terceiro livro, As Catilinárias, o mais antigo deles, Amélie Nothomb ainda não escrevia na primeira pessoa feminina, mas sim como um professor de grego e latim que, com a mulher amada, ambos aposentados e aos 65 anos, vai morar no campo, numa casa isolada, perfeita para os sonhos de ambos. Perfeita, a não ser pela presença de um vizinho que se impõe numa visita diária que perturba por completo a paz do casal. Novamente medo e submissão dão a nota da trama brilhantemente construída pela escritora belga, que traça com primor as personalidades dos poucos personagens do romance. Politicamente incorreta, gordofóbica, cruel, a narrativa mergulha num estudo acurado das coisas da vida, dos valores, da humanidade, do bem, da beleza, sem qualquer perspectiva redentora.
Ainda me falta ler outras histórias de Amélie Nothomb, que já publicou dezenas de livros, a maioria ainda sem tradução por aqui, mas vou tratar de fazê-lo o quanto antes!
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