As crônicas de viagem começam a chegar ao fim – calma, esta não será a última, mas venho percebendo que muitas vezes passei passando por certos destinos, sem contar boa parte das aventuras vividas.
Não contei do banho turco que eu, Maria Eugênia, Maria Lopes e Ana Arsênio tomamos numa casa de banhos em Istambul. Pensava que tinha sido num parque de Budapeste, na Hungria, mas a Maria Eugênia me corrigiu. O banho em si é delicioso, mas jamais esquecerei o odor agridoce emanado dos corpos daquelas pessoas reunidas sobre pedras lisas e escorregadias. O cheiro vinha sobretudo das mulheres que nos davam os banhos, em geral gordas e suarentas no ambiente de sauna, muito calor, muito suor, sem ar circulante e sem perfumes artificiais. Ainda hoje não tenho certeza sobre o que me falou mais aos sentidos, se o prazer da massagem vigorosa daquelas mulheres ou se o vapor de seus suores, quase intolerável, estranhamente íntimo.
Não contei que, quando chegamos a Viena, havia no estacionamento da estação de trem vagas demarcadas para mulheres, e que o cartaz era ilustrado por um singelo fusca rosa com maquiagem feminina.
Não contei que, a cada destino a que chegávamos, o Moacir me levava pra subir ao ponto mais alto da cidade. E que eu, contrariando os instintos medrosos, sobretudo em relação a alturas, seguia o que seu mestre mandava e lá ia atrás dele: Torre Eiffel, Torre de Londres, as escadarias estreitas da Catedral da Sagrada Família, em Barcelona, e o World Trade Center, em Nova York. Sim, subimos lá em cima poucos anos antes dos atentados de 11 de setembro. Não tirei fotos de dentro do prédio, mas, na visita à Estátua da Liberdade, nos deixamos registrar com as Torres Gêmeas ao fundo, como prova a foto que ilustra esta crônica.
Além de subir nas alturas, o Moacir também me ensinou a visitar museus. Foram vários a partir das duas viagens com ele, pois daí em diante panhei gosto e passei a frequentar esses templos da história e da cultura sozinha ou acompanhada. Devo mencionar pelo menos alguns que mais me marcaram: o Louvre, claro, onde o que mais me transportou numa viagem no tempo foi a seção dedicada ao Antigo Egito, com suas múmias e sarcófagos, peças de milhares de anos, desenhos, esculturas, cerâmicas, o ambiente inebriante de máquina do tempo.
Me encantei com o Museu Rodin, também em Paris, e com o Reina Sofia, em Madri, onde quase caí de joelhos diante do Guernica, de Picasso. Emoção que não senti na Mona Lisa, de Da Vinci, mas que quase me derrubou na Capela Sistina, de Michelangelo, no Vaticano, onde queria me deitar no chão e ficar contemplando, contemplando, até passar aquele torpor.
No Museu de História Natural de Londres cometi uma traquinagem. Vi de longe uma família brasileira circulando numa seção. Identifiquei-os, claro, pelas vozes altas, pela alegria, mas sobretudo pela camisa do Atlético Mineiro que um dos meninos vestia. Atleticana doente, como é do conhecimento de todos, completei sem pressa minha volta no local, até chegar perto deles. Quando passei colada no pequeno atleticano, cochichei no ouvido dele:
– Galoooooo!
O guri levou o maior susto, mas gostou e seguiu andando, olhando pra trás, pra mim, e rindo. Ele pra mim, eu pra ele.
Andei com a camisa do Galo no dia seguinte, na capital inglesa, anos depois em Santiago de Compostela, e em vários lugares por onde andei expus o manto sagrado.
Também faltou contar de perigos reais ou imaginários. Nunca me esquecerei do terror que vivi ao atravessar uma ponte na saída de Amsterdã. Estava de bicicleta, o vento começou a soprar mais e mais forte. Eu não sabia se voltava ou prosseguia, mas havia uma regra tácita nas pedaladas: a gente só anda pra frente. Por isso segui adiante, mas o vento apertou ainda mais e tive a nítida impressão de que ele me levaria em suas asas, a partir do alto daquela ponte. A certa altura tive que descer da bike e me abraçar a ela, esperando o pior passar. Assim que percebi que minhas forças me permitiriam voltar a empurrá-la, retomei o caminho e consegui chegar do outro lado. No dia seguinte, li nos jornais que aquela tempestade de vento havia provocado desastres não longe de onde estávamos. Virado barcos, interrompido o tráfego aéreo. Meu medo de voar da ponte não tinha nada de ilusório. O perigo era real e iminente.
Numa outra viagem de bike, só que na Chapada dos Veadeiros, passamos bem perto do fogo. Acompanhando esta semana o noticiário sobre as intensas queimadas que estão devastando parte daquele parque nacional em Goiás, me lembrei de uma pedalada que fizemos na região nessa mesma época do ano. Durante a noite, começamos a ouvir o cricri das chamas crepitando sobre a mata seca. Barulho, a luzerna do fogo e as partículas de fuligem alcançavam as barracas onde estávamos acampados. Os homens do grupo se levantaram de madrugada e foram lá perto do incêndio pra verificar a real distância e se estávamos no caminho da devastação. Avaliaram que era seguro permanecer onde estávamos, apesar do medo. Dormimos aquela noite com um olho fechado e o outro aberto, panos no nariz e todos os sentidos alertas pro caso de ter que levantar correndo e fugir das labaredas infernais.
Não contei também de como me comunicava com a família quando viajava sozinha antes de existir celular. Frequentava orelhões em todas as cidades que conheci. Tinha cartões com crédito pra chamadas frequentes, nas quais batia papo com meus pais, dava e recebia notícias. Em 1998, quando atravessei Grécia e Itália sozinha, a Copa do Mundo da França estava a toda, eu via os jogos e ligava pra casa pra comentar. Meu pai, no entanto, estava preocupado com outra coisa: a doença do cantor Leandro, que fazia dupla com o irmão Leonardo. Nós não éramos fãs deles, mas a comoção no Brasil era geral. O desfecho não tardou. E tive que consolar meu pai, que ficou tocado pela partida – tão cedo – daquele moço com cara de bonzinho e com o futuro abortado.
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