Comentários sobre o livro “Espiral do cão”, de Fred Maia
Antônio Sérgio Bueno
MÚSICA DE IGREJA – Me tocou fundo porque fui coroinha na igreja da minha cidade (São Gotardo) e cantava no coro que acompanhava cerimônias religiosas, mas o que ficou marcado, no meu coração fatigado, foi o sentimento de PERTENCIMENTO àquela cidadezinha para onde foi o narrador. Até hoje, quando visito minha terra, tenho o sentimento de estar voltando pra casa.
COMMODITIES, DEBÊNTURES E AÇÕES – Começo a perceber que o narrador em terceira pessoa, representante do autor dentro da narrativa, se reparte entre os protagonistas dos contos. Também divido com este narrador a ojeriza ao tal do Mercado, mas o Fred conseguiu fazer uma analogia muito legal entre as oscilações do Mercado e as mudanças na vida de qualquer pessoa, particularmente sobre o futuro de ambos. Bela a metáfora das ondas do MAR representando a instabilidade do MERCADO (“há coisas que não se podem prever” (p.13). E para jogar tanto o jogo do mercado quanto o da vida, é preciso PACIÊNCIA (p.14).
PUNK DA REPARTIÇÃO – Novamente o tema do desajuste entre a protagonista e a máquina da burocracia, como Carlitos conseguiu satirizar genialmente. De um lado, a engrenagem opressora; de outro, a “brutalidade sincera do punk” (adorei essa expressão). Lá FORA, o rugido da cidade; DENTRO da protagonista, “o silêncio de suas próprias composições” (p.18). A LIBERDADE no palco; a PRISÃO do sistema.
ENTREVISTA A DOIS – Percebo neste texto um traço geral da escrita do Fred (pelo menos até onde li): a capacidade de captar os detalhes mínimos das sensações mais íntimas dos personagens. Fred é um microscopista da alma humana: “… no olhar que cada um lançava ao outro quando achava que não estava sendo notado” (p.21). E como ele sabe ler bem o espaço, contaminando-o de humanidade: “A sala de reuniões estava mais fria que a sala de espera”. Vale perceber a confluência entre “frialdade” (temperatura) e “frieza” (emoção). O final é surpreendente porque frustra a provável expectativa do leitor que tem sua preferência por “P.” ou “L.” e gostaria de vê-la confirmada. Mas o eventual leitor pode também não ter nenhuma preferência. Decidir às vezes é muito difícil, muito doloroso.
O SEGREDO DOS HITITAS – Logo no início percebe-se que o protagonista ama os livros. Dois pequenos senões: 1) a repetição da expressão “vasto oceano” (ps. 26 e 27) e 2) o uso de um clichê batido para se falar de um livro: “Cada livro era uma porta para um novo mundo” (p.27). Mas o conto cresce à medida que é lido: acho ótimo um exemplo do conceito de hybris da Tragédia Grega, mesmo que o narrador não o tenha mencionado. Sirva de exemplo esta frase: “Ele sabia que estava ultrapassando os limites…” (p.29). Em toda a literatura universal há a punição pela transgressão de um limite. Desvendar muitos segredos é perigoso (o último parágrafo desta narrativa fala disso). É o que Fernando Pessoa chama de “a trágica ciência do ver”.
A GARAGEM – Neste conto é que o autor desenvolve melhor a relação homem-espaço. Os geógrafos chamam isso de “espaço vivido”. Primeiro, o espaço (a garagem) aparece em estado bruto. Depois o ambiente “começava a responder” (p.32). “O lugar começava a ganhar forma” (p.33). O protagonista parecia agir de forma instintiva: “As suas mãos pareciam saber” (p.33). O narrador sabe ouvir o recado dos objetos. Este conto é um belo raio-x de um processo criativo, como o narrador diz explicitamente no alto da página 35. Uma belíssima alegoria da criação artística, que termina com esta chave de ouro: “Era o lugar se comunicando” (p. 35).
NOVE E MEIA – Os personagens são nomeados pelos nomes das letras: Cê, Jota, Eme. Sem nomes, talvez por serem invisíveis, viverem à margem de uma sociedade de consumo. Muito legal a identificação desses seres anônimos e sua origem, seu espaço vivido. Assim como as “veredas” lutam contra a seca, eles lutam “contra seus próprios desertos” (p.38). No final desta mesma página, aparece a palavra-chave para dar sentido àquelas vidas e essa mesma palavra brilha na frase final: RESISTÊNCIA.
CARONA COM CANAS – Um conto muito bem urdido. Uma constante em vários personagens deste autor é a presença de uma “vida paralela” em cada um deles. Uma camada superficial representada por um trabalho que lhes garante a sobrevivência e a identidade profunda, geralmente ligada a uma Arte. Nesta narrativa, a “arte de representar”. Na conversa com quatro policiais, a perfeição de sua “performance” o salvou da prisão e suas trágicas consequências. Três destaques: 1) a fina elaboração deste símile: “A erva em sua mochila pesava como uma âncora em seus pensamentos…” (p.43); 2) a sutileza deste paradoxo: “a arte de se esconder à vista de todos” (p.45) e 3) a capacidade de criar tensões (“A tensão era palpável” (p.43) que contagiam o mais exigente leitor.
SHOW PARANOIA – Se E. era o centro das atenções, seu namorado M. parecia “comandar tudo ao seu redor” (p.48) e P. dominava o palco e o público. A banda brilhava na festa do DCE. Tudo isso era cenário nesta narrativa. O mais importante é a travessia íntima que acontece a cada personagem sob o efeito da droga. O apagado J. começa a se impor como protagonista. A partir dele se mostra a terrível atmosfera de um final de festa. J. quer “fugir de si mesmo”, “escapar” (p.50) da dolorosa “paranoia” (lembremos o título) ou, mais precisamente, esquizofrenia entre o “corpo acelerado” e a “alma exausta”. Um verdadeiro desvendamento da alma humana.
OBSERVAÇÃO IMPORTANTE sobre o livro como um todo: a arte da capa e ilustrações são fantásticas. Valorizam ainda mais a excelência dos textos.
E HOJE É APENAS SEGUNDA – Este conto me toca de modo especial porque fui professor por quase 60 anos e, às vezes, percebia alunos, dos quais o narrador-protagonista desta narrativa é uma perfeita réplica. Trata-se de um aluno desajustado à sua condição de estudante, alguém que não se adequa à rotina escolar. Quem fica olhando relógio o tempo todo durante qualquer atividade não ama o que faz, é “um peixe fora d’água”. Esta ANTÍTESE é eloquente: “Ela (a chuva) caía livre, enquanto nós (alunos) permanecíamos presos” (p.53). Mais explícitas ainda são estas palavras do protagonista para uma colega de sala, que indagava se algum dia entenderiam o que a professora falava: “… não é para entender. É só para AGUENTAR (destaque meu)” (p.54). Mas o pulo do gato está no salto que o narrador faz: “…a VIDA (destaque meu) às vezes parecia se resumir a isto: aguentar” (p.54).
ANALISTA DE ANALISTAS – Ao falar que aqueles comentários (dos psicanalistas) eram “ouro” (p.57), o narrador-protagonista está dizendo que esses profissionais, como todos os pobres mortais, são falados por suas falas, são ditos pelos seus silêncios. Analisando os analistas, o secretário (função do protagonista) deles estava “montando um quebra-cabeça invisível” (p.58), uma ciranda circular que pode ser resumida assim: os analistas analisam os pacientes; O PROTAGONISTA ANALISA OS ANALISTAS (daí o título deste conto) e o leitor analisa o narrador e a si mesmo através desta narrativa.
CHIFRE EM CABEÇA DE CAVALO – Um extraordinário conto sobre uma gravação musical em um estúdio. Há uma dialética implícita nesta “batalha diária de sons, silêncios e, principalmente, egos” (p.61): a bateria de Vara é a TESE; a guitarra de Dogão, a ANTÍTESE, e o baixo de Capa, a SÍNTESE. Perfeito? Não. A síntese maior e definitiva será a voz de Jorda: “Era a soma de tudo: a tensão, as brigas, o orgulho, o amor pela música” (p.65). E, no final, esta chave de ouro: “…no dia seguinte, tudo recomeçaria” (p.66). Ah… esse Fred e seu “olhar doce e crítico” (quarta capa).
TÉDIO EM TRÊS DIMENSÕES – A meu ver, a estrutura do conto reflete o título: a PRIMEIRA DIMENSÃO mostra o tédio pesado de um ritual de reuniões vazias de sentido; a SEGUNDA DIMENSÃO começa no segundo parágrafo da página 69: “Uma tarde, no entanto…” e mostra a representante do departamento (de quê?) exigindo a manifestação de cada um dos presentes; a TERCEIRA DIMENSÃO começa em “de repente, algo estalou dentro dele” (p.70) e apresenta a fala do silencioso protagonista que quebra o “tédio”. Portanto, há uma impropriedade no título: a “terceira dimensão” já ROMPE o tédio. Este tem apenas as duas primeiras dimensões porque a fala do protagonista instaura uma nova ordem.
CARA QUADRADA – Novamente o tema da rotina: “Todo dia era a mesma coisa” (p.72). Há uma clara oposição entre VIDA e TRABALHO: “Saio às seis (…). Era quando o dia de trabalho oficialmente acabava, e podia começar a viver de verdade” (p.73). Aqui “trabalho” mantém o sentido etimológico da palavra: tripalium, instrumento de tortura. Mais um aspecto fundamental deste texto: a importância de uma “olhada”, de VER. No início do texto, o protagonista diz: “Se fosse um dia de sorte, (a moça de calça colada) daria uma OLHADA (grifo meu) pra mim” (p.72). No final, a moça passa e nem olha para ele, mas ele exalta o “breve segundo” em que pôde contemplá-la, uma epifania para ele, como demonstra o final do texto: “Viu? – provocou Nim, me dando uma cotovelada. – Vi. Só vi”.
QUEM FAZ O QUÊ? – Mais um caso em que a protagonista toma consciência de que vivia uma situação sufocante e, pelo menos intimamente, se liberta. Amy era a provedora e os provedores acabam se tornando invisíveis porque o(s) provido(s) se acostumam a receber os favores de quem assume todas as responsabilidades. O marido “nunca a olhava de verdade” (p.78). O clímax do texto se dá no final, quando Amy, à beira de um lago, pela primeira vez entendeu plenamente sua situação existencial e “sentiu uma leveza invadir seu corpo” (p.82).
ISSO AQUI, FAÇO MELHOR – Um belo texto sobre os bastidores de uma criação literária. Vale notar que MAIA é o sobrenome do autor, sempre obcecado com o tema do “ponto de ruptura” (a eclosão do rompimento com uma rotina sufocante). Desta vez, parece-me uma experiência autobiográfica: o narrador conhece perfeitamente todas as etapas desse processo (“um saber de experiências feito”). Ei-las: inquietação, insatisfação, sensação de “fazer melhor”, “fome criativa” (p.84), vontade de “estrutura” e de “experimentação” (p.85), “dúvida” (p.86) e sentimento de realização, de que ele “podia, sim, fazer melhor” (p.87).
REGGAE ROCK BLUES DO AGENTE ADMINISTRATIVO – Acharia ótimo este conto se ele fosse publicado isoladamente, mas, no conjunto em que está inserido, dá a sensação de déjà vu. Reconheço que tem uma variante: o fato de o protagonista não se incomodar (p.90) e até “encontrar conforto nesse vazio” (p.90). Mas, quando o narrador fala em “ânsia de evasão”, passa a existir uma contradição. Talvez esta narrativa não devesse estar nesta coletânea porque, embora bem escrito, parece repetitivo.
O CIRCO HUMANO DAS VAIDADES – Agora sim! Está no tom! O narrador em terceira pessoa mostra o poder corrosivo da vaidade entre artistas de um circo (p.94). Instaura-se uma competição entre os artistas que empana o brilho de suas apresentações e provoca o distanciamento da plateia. A dançarina, “líder natural”, sente ruir sua liderança (p.95). A harmoniosa química daquele “sonho coletivo” tinha morrido.
NÓS CONTRA 120 – Este conto me fisgou já no primeiro parágrafo porque narrado em primeira pessoa por um professor de português (p.98). É a história de superação de três alunos (o 3 é um número cabalístico) que brilharam em uma apresentação musical.
POMPA E CIRCUNSTÂNCIA – Mais uma crítica às “aparências (que) precisavam ser mantidas” (p.104). Fred é perfeito para recriar uma situação em que uma pessoa fala muito e não diz nada. O primeiro parágrafo da página 107 é um ótimo exemplo. Não é gratuito o fato de o tal falante receber do autor o nome de “senhor V”, justamente a primeira letra do adjetivo “vazio”.
ATITUDE É TUDO – Novamente um protagonista ungido pela música, que lhe permite sentir-se diferente das “pessoas comuns” (p.109). A própria guitarra, personificada, é “uma extensão de seu corpo” (p.111). Quase terminando minha leitura, já dá pra fazer um apanhado geral do que li: há certos elementos temáticos reincidentes, eu diria de forma obsessiva. Por exemplo, esta estrutura: 1) apresentação dos protagonistas e suas circunstâncias; 2) surgimento de um desafio difícil; 3) todos os protagonistas vencem seus obstáculos (happy end). Outras constantes: reuniões vazias e sem sentido; onipresença da música; poder transformador da Arte, especialmente da Música.
TELESCÓPIOS E NOSSA CONDIÇÃO DE POEIRA – Talvez a mais bela narrativa do livro: tematicamente, uma sintonia fina alcançada pelos personagens, mediada pela beleza e amplidão do Cosmos; quanto à linguagem, imagens belíssimas como esta da “nebulosa”: “um redemoinho de cores e luzes”. Importante também o domínio que o autor demonstra dos recursos formais para alcançar maior expressividade (a repetição de palavras e das reticências é índice de intensidade emotiva): “EU… EU não sei. Acho que nunca senti algo assim antes. COMO SE… COMO SE nada mais importasse” (p.117 – grifos meus).
O ALFABETO DEVANÁGARI – Desta vez achei até legal a reincidência de professores que tentam contagiar seus alunos com o próprio entusiasmo com as matérias que ensinam ou temas que trabalham. Mesmo com um certo didatismo moralizante, acho que esses últimos contos souberam valorizar esta profissão (parece que a sua também) à qual dediquei quase 60 anos da minha vida.
O FIM DE UMA MENTIRA – Legal a expressão “leveza amarga” com sua carga semântica paradoxal. Acredito que tenha sido a primeira vez que o substantivo “leveza” encontrou o adjetivo “amarga”. Mais um “ponto de ruptura”: o final de uma amizade. Primeiro, o constrangimento; depois a libertação de uma relação que já estava morta. O autor trabalha um tema sobre o qual venho refletindo há bastante tempo: a qualidade do silêncio nas relações humanas.
Algumas notas de caráter geral:
– gostei de ver que o autor se prepara com afinco para trabalhar bem suas narrativas, mostrando um leque bem diversificado de interesses;
– noto também que as frases do autor têm um ritmo muito harmonioso, um balanço bastante agradável;
– o autor consegue criar com maestria atmosferas de tensa expectativa, mantendo o leitor em suspense por um bom tempo.
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