Orelha escrita pelo amigo e grande poeta Marcos Fabrício Lopes da Silva para O Quarto Canal:

Conforme a teoria de Montesquieu (1689-1755), trabalhada no livro Do Espírito das Leis (1748) e evidenciada pela Constituição Cidadã de 1988, eis os Três Poderes do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário. Desde muito, sabemos que o poder sem o saber é autoritário; democrático é o poder com o saber. O poder sem o saber é alienado; educado é o poder com o saber. O poder sem o saber fica doente; saudável se encontra o poder com o saber. O crescimento de um país avança de verdade quando os Três Saberes da Nação – Ensino, Pesquisa e Extensão – espalham-se como cultura e cidadania à disposição de todos nós. Nesse processo, Educação e Saúde compõem a dupla dinâmica que responde pelos valores de formação humana e social. É nesse sentido, de formação, que se dá a importância do processo educativo para o desenvolvimento da consciência social sobre os direitos da vida cidadã, podendo-se entender e realçar a saúde como um desses direitos. Além do enfoque orgânico, os cuidados com a saúde englobam eficácia em termos de infraestrutura, saneamento, habitação, educação, trabalho, atendimento médico, hospitalar, odontológico de qualidade; assim como demandam condições eficientes de vacina, de informações ao público sobre prevenção de doenças e formação de atitudes e hábitos para uma vida saudável. A origem e o propósito de todo saber encontram-se na sociedade, na existência, na vida, que se deseja e se precisa melhor.

Falando em vida com plenitude, a literatura sempre esteve a par com o máximo que a Humanidade pode fazer para estender o horizonte de sua consciência, seja exterior ou interiormente. O quarto canal, livro de Clara Arreguy, é todo ele irrigado com essa opulência do ser, o pensamento sendo levado corporalmente ao reino do sentimento, e o sentimento conduzido com a mesma ousadia à esfera do pensamento. Ofício, técnica e forma participam efetivamente desta obra que nos convida a entrar no mundo dos profissionais de saúde e educação, revelando seus bastidores de funcionamento, entre os altos e baixos da vida pessoal-trabalhista. São enredos ricamente tocados por dilemas existenciais, políticos e éticos que dão ritmo à vida comumente ocupada entre “o feijão e o sonho”, como diria Orígenes Lessa.

Da primeira à última página, uma galeria de personagens mostra “detalhes tão pequenos de nós todos”. Por exemplo, fazendo um passeio etimológico pelos nomes disponíveis na trama, percebemos que ‘as profissionais da boca’ (início do sistema digestivo e integrante do aparelho fonador) – a dentista Mariluz (a “iluminada”) e a professora Fabrícia (a “artesã”) – representam o encontro coerente entre o pensar (o discurso) e o fazer (o agir) em prol do desenvolvimento humano integral e holístico. “Boca de anjo” e “boca do inferno” dão o tom da gramática do desejo especulada na voz narrativa de Clara Arreguy. Ela afirma o ser humano como animal simbólico e construtor inventivo, mesmo quando “o desencantamento do mundo” (Max Weber) e “a banalidade do mal” (Hannah Arendt) resolvem acinzentar a verdejante paisagem. Tanto o pessimismo exagerado, quanto o otimismo desenfreado, são perigosos nós. Se a dor de dente vem do quarto canal (tratamento dentária) em termos denotativos, ela abre passagem como quarto canal (comunicação educativa), metaforicamente firmado para cuidar da dor de gente. Dor que se apresenta quando escutamos demais o exterior, o que vem de fora. Dor que se manifesta quando ouvimos pouco o interior, o que vem de dentro. A construção da vida precisa estar além da estranha rotina de preparação da morte. Morte é tudo o que deixou de ser criado. Por isso, criar é manter a vida viva. Só a criatividade nos dará a possibilidade de solução para cada desafio do novo.

Marcos Fabrício Lopes da Silva, professor e escritor