Orelha escrita pelo psicólogo José Maurício da Silva para o livro Presença Ainda, de Maria do Carmo Arreguy Corrêa:
O livro “Presença ainda”, que tenho a alegria de prefaciar, me remete a um lugar privilegiado. Lugar construído ao longo de vários anos, marcado sempre pela cumplicidade e no desejo de ser sempre “presença ainda”. Maria do Carmo, ao propor o registro de suas experiências, fala-nos de tempo; categoria esta que lhe é muito cara, visto o desenrolar de sua existência, que desliza sabiamente pelos túneis da vida.
A nossa substância é o tempo e somos feitos e efeitos dele. Nesse sentido, a autora, ao perscrutar seu baú, seleciona algumas memórias e dá aos leitores a possibilidade de conhecê-las. São muitas lembranças. Mas nem sempre lembrar é reviver. É um exercício de se refazer, reconstruir, repensar as experiências a partir da lucidez propiciada pela distância no tempo. Embora nossas lembranças nos pareçam nítidas, sabemos que não são as mesmas que experimentamos, pois não somos os mesmos de então, porque algo de nosso mundo interno – nossas percepções – mudou e, junto com elas, foram-se nossas ideias, valores e nossos juízos.
Penso que escrever memórias – quando falo de memórias me refiro às estranhas ressurgências do passado no presente, ranhuras vívidas –, antes de mais nada, é recontar a própria história “usando” personagens que nos auxiliam na montagem da cena. Usamos o passado para dizer quem somos nós no presente. Assim, olhar retrospectivamente é uma reorganização, uma maneira de conferir a si um sentido. Todos fazem isso. Uma necessidade de construir referências que nos sinalizem “onde” estou e o que fiz até aqui, pois o tempo é fugidio e não o controlamos, embora nasçamos no tempo, afetados por ele; somos tempo encarnado.
Ao entrar no mundo, o ser humano acontece como ser temporal. Entrar no tempo, estar ou viver no tempo, o aqui e agora, único tempo que nos é disponível para construir respostas a partir de um diálogo contínuo entre o real e o ideal, ou entre o que sou e o que serei. É experiência marcada pela dor, pelas perdas e pelo luto. Mas também abertura para o pensamento que testemunha e segue-nos na árdua tarefa de viver uma vida que se faz história. Como diz Karen Blixen, “todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história e contar uma história sobre elas”.
Entendo que “Presença ainda” fala das marcas que os personagens deixaram, marcas que se constituíram como passado, mas o passado nunca está morto – aliás, não é nem mesmo passado, eis aí a prova quando Maria do Carmo dá-lhe materialidade. Como monumentos de cidades antigas que despareceram na história, mas que, ao mesmo tempo, ficam aí, presentes, ausentes… ainda… cada conto vai emergindo, suscitando no leitor sentimentos, emoções, curiosidades e, por que não?, desconforto frente a uma mulher tão espaçosa como tia Vivi. Ou admiração ante o amor incondicional da Laila. Ou compaixão com o Menino do Muro ante o grande vazio deixado pela saudade. Emocionamo-nos em Caminhos com o escritor tímido que fala do medo como parte da vida. Aplaudimos e festejamos o “reencontro” em O Filme, que o tempo se recusou a apagar. E nos perguntamos pelo paradeiro da Excêntrica Senhora: para onde terá ido? E Terezinha de Jesus? Como não admirar a fidelidade e a cumplicidade dessa relação? Em O Amigo, a maturidade se revela como momento singular da construção de novos e fortes vínculos sociais. Finalmente, nos curvamos, ou melhor, reverenciamos o amor em O Primeiro, O Segundo e O Terceiro.
Ao rastrear sua trajetória, a autora, como que num trabalho de parto, escutando as marcas corporais – cheiro, imagens, sons, sabores, odores –, inicia um trabalho de leitura das inscrições sulcadas pelo tempo na própria carne e vai, paulatinamente, colocando as imagens, uma a uma, no seu texto, deixando aí, agora, os próprios rastros nos rastros da escrita.
“Presença ainda” é um convite a saborear o cotidiano da vida com que a testemunha – Maria do Carmo – nos presenteia.
José Mauricio da Silva
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