Meu pai e eu sempre tivemos uma ligação muito grande. Fosse porque, na minha infância, nasceram-lhes, para ele e minha mãe, mais três crianças, o que lhe fez cair no colo um par de pequenos pra pajear, fosse por afinidade, mesmo. Afinal, o que nasceu primeiro? Ou a afinidade nasceu desse convívio tão próximo?

Desde cedo ele nos levava de ônibus pro Instituto de Educação – e conseguia nos perder dentro do ônibus. Saímos uma vez de mãos dadas com outro homem! Nos carregava com ele pro Mineirão recém-inaugurado, presenteando-me assim com a paixão, que agradeço a ele até hoje, pelo nosso Galo forte vingador.

Meu pai era inteligente, sagaz, culto, mas também divertido, humilde, humano. Gostava das coisas mais simples: biscoito de polvilho, doce de banana Ojuara, suspiro, quindim. Desses aí, eu só não via muita graça no biscoito de polvilho. E lá vinha ele agarrado ao saquinho de biscoitos:

– Filha, quer um?

– Não, obrigada, pai, não gosto muito de biscoito de polvilho.

– Mas você já experimentou este aqui?

– Não, este, não.

– Então experimenta.

E eu provava um, pra não fazer desfeita.

E dali a alguns dias, a mesma conversa:

– Não, brigada, pai, não sou muito chegada em biscoito de polvilho.

– Mas e este daqui?

– Este ainda não.

Mais um pro papinho. Assim foi e é até hoje, passados 17 anos de sua morte, quando belisco um ou outro biscoito de polvilho, só pra lembrar que aquele ali, único, nunca eu havia provado.

Nossas conversas eram cheias de códigos. As mãos dadas que serviam de apoio pra quem nunca usou bengala até o fim, aos 91 anos, mas também de diálogo mudo, sinalização de algo a conferir, alguém a observar. Ele e minha mãe conversavam conosco com as mãos, sabendo que nos entendíamos por meio daqueles apertinhos mais ou menos apertados, às vezes fortes ou insistentes.

Eu achava graça na maneira como ele falava com a irmã dele ao telefone:

– Lola! – chamava, como se tivesse subido na escada e gritasse por alguém do outro lado do muro.

Comigo nem com ela, nem com ninguém, dava muita trela ao aparelho. Falava uma ou duas coisas e se despedia:

– Filha, não esquece da gente não, tá?

– Como esquecer de vocês, pai? – retrucava eu, daqui de Brasília, engasgada e ainda incrédula por ter tido coragem de sair de perto deles depois de morar por 42 anos no colo do casal, agora mais velhinho e dependente, justamente quando eu precisava bater asas e voar.

Pouco antes de morrer, ele deixou um recado na minha secretária eletrônica:

– Clara, liga pra mim. É o seu pai.

A vozinha inconfundível, já envelhecida e de poucas forças, ficou ali gravada durante uns anos, pra eu reouvir sempre que sentia, como agora, a saudade a estrangular minha garganta. Depois veio um pau na máquina e perdi todas as gravações que tinha. “Nada de automático tem prevalecência fixa”, diria ele, citando um amigo meio filósofo.

Não tem problema. Essa voz a me dizer “É o seu pai” não sai dos meus ouvidos, da minha lembrança, ocupa todo o meu coração, junto com as mãos ossudas de apertinhos expressivos, os olhos arregalados, verdes como as águas límpidas de um sonho bom.

Felicidades pra todos os papais, digo aos outros, com alegria, porque o meu dia é feliz. Porque tive e tenho a plenitude desse amor.