Uma das escritoras mais importantes da cena atual, premiada seguidamente – Jabuti, Prêmio São Paulo, Casa de las Américas -, Maria Valéria Rezende conjuga com igual maestria a escrita sofisticada e a liderança junto a seus pares. Ou melhor, a “suas” pares. Afinal, foi ela a idealizadora, mentora, inspiradora do Mulherio das Letras, movimento que fez ecoar, de maneira consagradora, a voz das mulheres que escrevem, editam, ilustram, revisam, contam histórias, vendem livros.

Em seu mais novo romance, Carta à Rainha Louca (Alfaguara), Maria Valéria não faz qualquer concessão a modismos ou facilidades. Narra, em linguagem compatível com a época, fatos passados no final do século XVIII, protagonizados por uma mulher que, pasmem!, sabia ler. Isabel das Santas Virgens era uma menina sem família, criada entre a senzala e o quarto da sinhazinha Blandina, de quem se torna como que irmã. Com a jovem rica, foi enclausurada num convento como punição pelo pecado da carne. Mais pra frente, é presa por crimes como passar-se por homem e atuar em trabalhos que não lhe eram permitidos.

Isabel é uma heroína feminista avant la lettre. Sem eira nem beira, persegue, pelo afeto a Blandina, perigos e desafios que enfrenta munida de sua inteligência e coragem, aprendidas entre a leitura de livros e o acesso à rua, à malandragem. Nem Isabel nem Maria Valéria fazem discursos. Toda a saga da jovem é narrada por ela mesma numa extensa carta à rainha Maria I, a Louca, com quem ela se sente irmanada na opressão pelo mundo dos homens.

Junto a essa exposição crua da desimportância e da luta dessa mulher, a freira católica Maria Valéria não esconde críticas também às hipocrisias, violências e incoerências de uma religião exercida não por espírito cristão ou amor ao próximo, mas por desejos de poder e amor ao dinheiro.

O início do livro pode parecer penoso para quem tem dificuldade em imergir na linguagem rebuscada da época, que Maria Valéria tão bem reproduz com seu humor característico. Após a extensa narrativa sobre como conseguiu papel, tinta e pena para escrever a carta redentora, numa indisfarçável declaração de amor aos livros, à leitura e à escrita, a autora afinal entra na trama propriamente dita e o livro ganha mais dinâmica, facilitando assim a vida do leitor.

Um romance sutil, cheio de entrelinhas, mais uma primorosa criação de Maria Valéria Rezende.

3 thoughts on “Feminismo avant la lettre

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