Eu me conheço e sei que, quando me apaixono por um autor, fico fissurada em ler tudo que posso dele. Descobri o Sándor Márai pelo maravilhoso As Brasas, aí li o excelente Veredicto em Canudos, e agora cheguei a A Gaivota (D. Quixote), o mais difícil deles. Por tudo, pela subjetividade da narrativa, pela tradução em português de Portugal, pelo mistério contido na própria trama, capaz de envolver o leitor em dúvida interminável.
Na Hungria do início da II Guerra, o protagonista é um funcionário de governo de meia-idade, incumbido de redigir importantes documentos. Procura-o no gabinete uma jovem estrangeira que precisa de um favor. Encantado por sua figura, ele a convida a ir consigo à ópera naquela mesma noite. De lá jantam e vão à casa do homem.
Acompanhamos os dilemas da dupla de personagens pelos pensamentos e diálogos. A moça misteriosa, para o anfitrião, assemelha-se de tal forma à sua amada, que se suicidou por amor a outro, que, para ele, não resta dúvida: trata-se de um retorno. Ele discorre sobre o paradoxo da unicidade de cada um e da unidade de todos nós. Ela lhe conta sua história, em que as lacunas só dão margem a mais interrogações. Algo há.
Por trás de tudo, a guerra que se inicia e que joga o mundo num torvelinho. Será ela reencarnação, alma gêmea, espiã, fantasma? Será ele louco, alucinado, paranoico? Pra onde caminha tal relação? Impossível ou inevitável?
Se a narrativa mais confunde que esclarece, o texto de Sándor Márai novamente enche os olhos do leitor. Destaco a descrição que faz do beijo de forma que nunca li antes:
“beijo porque, no fundo da vida humana, apenas se encontra o beijo, e porque com o beijo é que os corpos conseguem expressar aquilo que procuram durante uma vida inteira; o beijo porque, entre homens e mulheres, as palavras são supérfluas. O beijo aconteceu por ter chegado o momento certo e inevitável em que tudo o que podia ocorrer sem o beijo não teria sentido nenhum. Esse gesto ávido e inevitável, esse encontro entre duas epidermes secas, fora dos hábitos e impulsos e ritos, essa mordidela dócil, esse gesto carnívoro domesticado, que o ser humano preserva nos nervos e nos lábios como recordação de algo que no início dos tempos e da vida era temível, sangrento e mortal”…
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