O menino andava pela cidade calorenta, chutando pedras, procurando algum amigo com quem bater uma bola, uma companhia para um mergulho no rio ou outra aventura mais ousada, uma visita ao cemitério atrás de uma caveira com a qual brincar de Shakespeare:
– Ser ou não ser, eis a questão – matutava o menino.
Suas dúvidas eram enormes para alguém de apenas onze anos: obedecer aos pais e começar amanhã mesmo a lida no bazar, onde trabalharia no balcão de sol a sol, com o minguado vencimento indo parar nas mãos do pai, em espécie ou na forma de aviamentos para a oficina de costura do único alfaiate da cidade; ou bater pé na necessidade de prosseguir nos estudos, tanto ele gostava das palavras e dos números, dos versos e da prosa, das contas de cabeça, tabuada decorada, a geografia do vasto mundo a ser explorado.
Não havia escolha, no entanto. Era obedecer ou obedecer. Papai e mamãe, coitados, tão velhinhos – na visão baixinha do menino –, não fariam isso com ele, não fosse a necessidade de ajuda no sustento da família. Os dois filhos mais velhos já haviam ganhado cada qual o seu destino: o primogênito servira o Exército e agora morava em outra cidade, onde trabalhava e de onde mandava cartas com as notícias e o adjutório que pudesse. O segundo, também terminado o primário, empregara-se como contínuo na única agência bancária da região. Somente às meninas foi permitido permanecer no colégio. Seriam professoras se conseguissem se formar. Para tanto, era preciso completar com uma parcela polpuda as bolsas de estudo parciais que as freiras haviam generosamente concedido às filhas do alfaiate português.
O menino sabia disso tudo. Que seu papel nessa vida seria ajudar pai e mãe a dar um futuro para suas tão dedicadas irmãs. Não passou pela sua cabeça seguir a profissão do pai e aprender os segredos de agulha e linha, tesoura e metro. Queria outra coisa, embora não soubesse exatamente o quê. Então, em vez de permitir que adentrasse sua alma de criança algum resquício de mágoa, tratou de correr à casa do avô, maior e mais bem servida do que a da própria família, em termos de livros e outras distrações que só ao menino excitavam.
– Bom dia, meu capitão! – saudou a figura provecta do ancião, seu herói, posto que herói na Guerra do Paraguai, feito comprovado pela presença imponente, na parede da sala, da espada honorária recebida como agradecimento da pátria brasileira ao heroico português, dotado de cultura e patrimônio, que se aventurara ao sul nas sangrentas batalhas do século passado.
– Bom dia, meu menino inteligente. Vieste com fome de bolos ou com sede de saber?
– Os dois, avô. Hoje é meu último dia de férias. A partir de amanhã, lanço-me ao mar oceano em busca de novas conquistas para além da Taprobana. Parto cedo da ocidental praia lusitana, como podes bem imaginar.
– E em que paragens fica mesmo essa Taprobana mítica ou mitológica, meu pequeno lusíada?
– Fica na praça principal, avô. No bazar do senhor Plínio. A partir de amanhã empreenderei aventuras d’além mar por aquelas plagas.
– E tens certeza de que os combates com terríveis monstros marinhos será o melhor para o seu destino de infante, ó, pá?
– Avô, o senhor, que foi herói de guerra, ousaria confrontar uma ordem de sua filha mais velha, a boa senhora que chamo minha mãe?
– Agora apertaste-me sem me abraçar, meu neto. A resposta é não, não teria valentia para tanto. A Sinhá não é para os fracos. Fazes bem em cumprir-lhe à risca as determinações. E o teu pai, aquele meu conterrâneo? O que pensa disso tudo?
– O pai também conhece o temperamento doce e firme da mulher com quem se casou, meu avô. A ele também custa resistir ao poder de quem o tem. De mais a mais, os ditames da carestia foram os verdadeiros responsáveis por tal destinação. A família convoca-me ao serviço, ao serviço, pois, irei, com a fidalguia aprendida aqui, neste teu escritório.
– Neto poeta, como falas bem, ó, menino!
– Tudo aprendido aqui, avô, com a tua prosa e com os teus livros. Agora, porém, as vindas terão que ser reduzidas aos fins de semana. Por isto estou aqui hoje e agora: para me despedir com a leitura de alguma dessas obras-primas que o senhor mantém entre tantos metros, quilômetros de saber paredes afora.
– Pois bem, já leste os maiores entre os maiores: Camões, Cervantes, Shakespeare, Hugo. Se bem que, do nosso poeta, ainda lhe falta muita coisa…
– Luís Vaz de Camões, grande vate português, enxergava mais com um olho do que nós com todos três!
– Ah, menino, vocês não respeitam nada nem ninguém, mesmo! – ralhou entre risadas o velho herói da espada honorífica.
E buscou, entre os preciosos livros que mantinha e dos quais cuidava com zelo de colecionador, um volume ensebado de tão lido e relido.
– Conheces a história de Jacó e Raquel?
– A da Bíblia? Claro.
– Não, a versão camoniana da história do Antigo Testamento.
– Esta ainda não, avô. De que se trata?
– Trata-se de um soneto que o vate compôs para recontar, à sua maneira, o maior entre todos os amores.
– Se é romântico, é comigo mesmo.
– Pois não sei? És o único menino de onze anos que iguala na preferência as histórias de amor às de aventura e perigos.
– É que antevejo, avô, nos caminhos do coração, tantos perigos e aventuras quanto nos mares nunca dantes navegados.
– E ao final de tudo, venturas, pois não?
– Venturas quando o amor é correspondido, ou desventuras, como sói acontecer.
– Pois vamos a elas:
Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prêmio pretendia.
– Da serrana bela, avô, já ouvi falar, mas não sabia que se tratava da mesma personagem bíblica cujo pai a usou para manter escravo o pretenso genro.
– Pois é, o pai, “usando de cautela, em lugar de Raquel lhe dava Lia”.
– Como pode, avô? É justo o que fez Labão a Jacó?
– Aqui não falamos de justiça, meu neto. Aqui falamos de provas de amor. É ou não é o que faz Jacó ao aceitar servir mais sete anos de pastor a esse sogro enganador? “Mais servira, se não fora para tão longo amor tão curta a vida!”
– Tens razão, meu capitão. Sinal de que, não importa quão custoso é o sacrifício, se ao final da estrada estará à sua espera o pote de ouro, o amor da serrana bela.
– És um grande leitor, meu pequeno.
– Oxalá pudesse viver entre os livros, como o avô.
– Estás tranquilo para começar amanhã nova vida, agora no mundo dos adultos, dos que trabalham para trazer para casa o sustento da família?
– Estou, avô. De mais a mais, o rio sempre estará ali atrás para um mergulho e umas braçadas. Os campinhos, para um bate-bola. O cemitério, para uma reflexão hamletiana junto às caveiras. E aqui, na sua biblioteca, a sabedoria do avô e os versos do grande vate português.
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